terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Prefácio do livro "Escritos metodológicos de Marx"


Um vigoroso estudo sobre 
o método em Karl Marx

João Alberto da Costa Pinto

            A obra de Nildo Viana afirma-se a cada livro publicado como uma das mais instigantes do marxismo brasileiro e o leitor terá a prova desse fato inconteste com a leitura desta notável introdução aos “escritos metodológicos de Marx”, que agora aparece na sua terceira edição. O jovem autor, que é professor de Sociologia na Universidade Estadual de Goiás, é responsável por um já expressivo conjunto de estudos marxistas com temas e problemáticas interdisciplinares em livros como Introdução à Sociologia (2006), A Dinâmica da Violência Juvenil (2004), Estado, Democracia e Cidadania (2004), entre outros títulos e dezenas de capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais. E a marca mais substantiva desse conjunto de obra é a reflexão teórica sobre a obra de Karl Marx, no qual este livro é o seu melhor exemplo.
            Nildo Viana compõe sua trajetória política e intelectual nos quadros do marxismo brasileiro a partir de sua prática na universidade, ressalvando-se de modo enfático que a sua perspectiva rompe radicalmente com os cânones que sempre fundamentaram essa cultura: o marxismo pecebista, o marxismo fenomenologista acadêmico e o marxismo de tintas politicistas de matriz gramsciana. Seu projeto marxista insere-se de modo intransigente e radical na cultura dissidente anti-capitalista, naquilo que a ortodoxia leninista-stalinista sempre convencionou chamar pejorativamente de “esquerdismo”. Exceto pela obra de Maurício Tragtenberg não há no Brasil uma tradição consolidada de heterodoxias marxistas pautadas fundamentalmente por posições anti-leninistas, propositora, portanto, da radicalidade política anti-capitalista de bases autogestionárias. Em língua portuguesa, oriunda das contradições sociais do processo da Revolução dos Cravos (Portugal, 1974 – 1978), apresenta-se também a obra e análise marxista de João Bernardo. Junto a esses nomes, coloca-se agora o de Nildo Viana, ressalvando-se, contudo, as substantivas diferenças teóricas que agregam entre si. Existe, portanto, em língua portuguesa e na historicidade do marxismo brasileiro um marxismo radicalmente heterodoxo porque fundamentalmente ortodoxo com a obra de Marx, ortodoxia afirmada pela necessidade contínua de se justificar teoricamente no confronto com a obra marxiana original, ao contrário, por exemplo, das práticas tão comuns da ortodoxia marxista brasileira que com poucas exceções sempre preteriu a obra de Karl Marx pela dos clássicos marxista-leninistas.
            É possível falar-se em “marxismo brasileiro” pela larga historicidade de trabalhos aparecidos ao longo dos últimos oitenta anos. O marxismo brasileiro, se pensarmos num dos seus principais cânones, a obra de Caio Prado Júnior publicada nas décadas de 1930 – 1970, sempre esteve envolvido com o sentido de se explicarem os significados do Brasil no mundo, os significados estruturais do Brasil na lógica da reprodução capitalista internacional. No entanto, práticas intelectuais que visassem à interpretação da obra original de Karl Marx, nunca foram uma marca estrutural dos clássicos do marxismo nacional. Poucos trabalhos de intelectuais brasileiros reuniram esforços nessa direção. Ressalve-se, no entanto, que o próprio Caio Prado Júnior foi um dos pioneiros nesse tipo de investigação, com a publicação na década de 1950 de dois extensos estudos sobre o modelo teórico de Marx e do marxismo em geral: Dialética do Conhecimento (02 volumes – 1952) e Notas Introdutórias à Lógica Dialética (1959). Estes trabalhos afirmaram uma das marcas indeléveis do marxismo brasileiro: o positivismo stalinista. As divergências políticas de Caio Prado Júnior com o Partido Comunista Brasileiro no que é demonstrado por estes dois trabalhos afirmavam o historiador paulista num campo stalinista ultra-ortodoxo, e nesse sentido, a programática do stalinismo pecebista era inquestionavelmente mais heterodoxa, por mais paradoxal que seja tal assertiva.
            É na cultura política pecebista que o marxismo brasileiro deitou suas raízes. O pioneiro foi Octávio Brandão, que além de ter elaborado a primeira tradução do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, em 1924 (tradução feita do francês), foi também o primeiro intérprete marxista da processualidade histórica brasileira, com o seu livro Agrarismo e Industrialismo (1926). O esforço pioneiro de Octávio Brandão trazia a marca do autodidatismo militante dentro de um ambiente fortemente marcado pelo positivismo e pelas estruturas programáticas do marxismo-leninismo reproduzidas internacionalmente pelas agências de propaganda stalinista do Comintern soviético, onde esse modelo teórico – político disseminou-se sob a produção stakhanovista de manuais de autores soviéticos como Lapidus e Ostrovitianov (autores de um manual de “economia política marxista” de muitas edições em português e que sempre foi vivamente recomendado por Caio Prado Júnior como leitura obrigatória para a formação do militante comunista brasileiro).
            O fato é que apesar de todas as dificuldades teóricas, instituiu-se no Brasil uma cultura marxista que mesmo não tendo na obra de Karl Marx o seu centro afirmador, forjou interpretações do Brasil radicalmente originais. Além dos trabalhos de Octávio Brandão e Caio Prado Júnior, até a década de 1960, as obras de Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães foram os melhores exemplos justificadores dessa assertiva, apesar das inúmeras diferenças teóricas que portavam entre si. Nelson Werneck Sodré, por exemplo, que foi a expressão cimeira dessa cultura pecebista tem uma obra de profunda e heterodoxa originalidade heurístico-interpretativa da realidade brasileira, marca que o distingue, dentro dessa cultura, como a mais fecunda e expressiva reflexão marxista brasileira do período.
            No Rio de Janeiro, nas páginas da revista pecebista Estudos Sociais (1958 – 1964) apareceram os primeiros estudos dedicados à obra de Karl Marx, geralmente em trabalhos traduzidos para o português de autores como Georg Lukács. Jovens marxistas brasileiros responsabilizaram-se por essas traduções e afirmariam-se logo a seguir, também como pioneiros no Brasil, de estudos sistemáticos sobre a obra de Marx, foi o caso, por exemplo, dos trabalhos de Leandro Konder. Em São Paulo, no mesmo período, nas páginas da Revista Brasiliense (1955 – 1964), editada por Caio Prado Júnior, aparecem os primeiros trabalhos marxistas de autores como José Chasin e Michel Lowy (que depois demarcariam carreiras no campo da heterodoxia marxista contemporânea, centrada principalmente no nome de Georg Lukács). Gravitando em torno dessa revista e dos trabalhos de Caio Prado Júnior, dentro da Universidade de São Paulo (USP), um grupo de jovens professores a partir de 1958 desenvolveu por vários anos uma experiência de leituras e estudos sistemáticos sobre a obra magna de Marx – O Capital. Essa experiência ficou conhecida como “Seminário Marx”. Do grupo, vários intelectuais projetaram-se posteriormente como responsáveis por algumas das mais fecundas investigações do marxismo brasileiro, principalmente, os trabalhos historiográficos de Fernando Novaes e os de cunho filosófico de José Artur Giannotti e Rui Fausto. A universidade passava a ser o segundo espaço institucional mais importante de realização de trabalhos marxistas no Brasil e essa projeção teórico-institucional teve vida até meados da década de 1980.
            Da década de 1980 aos atuais dias, o marxismo brasileiro sofreu a marca indelével do abandono, da abjuração teórica. Só os trabalhos de Jacob Gorender é que poderiam afirmar uma sobrevida ao marxismo como projeto teórico político de análise global. Da década de 1980 ao presente momento o marxismo tem sido sistematicamente rejeitado como modelo explicativo e como perspectiva política. Se o marxismo brasileiro nasceu nos quadros do pecebismo político, com a experiência acadêmica da década de 1980, viu-se derrotado politicamente em nome de um rigor formal de investigação. Nas práticas do marxismo acadêmico do período anunciava-se a derrota hoje tão visível. No entanto, de outras práticas acadêmicas é que aos poucos renasce o marxismo como perspectiva proletária, como perspectiva de estudantes proletários que não podem mais compactuar com a simples perspectiva de um dia tornarem-se gestores intermediários do capital transnacionalizado, dessas práticas de novo tipo nascidas nas frestas da universidade tecnocrática entre alguns professores e alunos é que aos poucos vão-se delineando relações sociais fecundamente anticapitalistas e é dentro de tais práticas que o livro de Nildo Viana se justifica historicamente.
            Nildo Viana apresenta-nos a questão do método em Marx sob uma perspectiva totalizante, isto é, apresenta-nos o conjunto da obra marxiana como um todo metodologicamente coerente, dissipando assim, certos relativismos que poderiam insistir ainda na presença de diferentes “perspectivas” (o Marx “romântico” dos escritos de juventude; o Marx “científico” dos escritos de maturidade). Essa atitude para com a obra marxiana justifica-se pelo fato de que a perspectiva política de Marx sempre se radicou nas lutas políticas, nos conflitos sociais de seu tempo, sempre esteve envolvido junto ao proletariado no confronto de classes imanentes na experiência capitalista, lutas essas em que Karl Marx como intelectual se determinava como sujeito histórico concreto. Sendo assim, o que nos ensina Nildo Viana é que o método de Marx deve ser percebido não como um instrumento apenas determinado à investigação histórico – sociológica de cariz acadêmico, por exemplo, mas fundamentalmente como um instrumento de combate às ferramentas ideológico-científicas do modo de pensar tecnocrático capitalista, ferramentas essas que no caso brasileiro em específico dão a sustentabilidade às funcionalidades da produção acadêmica na reprodutibilidade das práticas organizatórias da exploração capitalista.
            O método em Marx é um instrumento de ciência e é também um instrumento ideológico, mas não a ciência ou a ideologia convencionalmente vistas como expressões de pretensas verdades ou falsas consciências a desvelar, o método em Marx, afirma-nos Nildo Viana, é a expressão dos instrumentos abstratos de codificação das contradições da realidade concreta no capitalismo, expressão desveladora de um real sempre apresentado como fragmentado, como por exemplo, o apresenta a irracionalidade dos reacionarismos culturalistas apresentados como práticas de investigação científica no esteio da universidade capitalista, onde os “atores” sociais do concreto histórico na sua locução como objetos de investigação são pensados como entidades autoreferentes sem qualquer determinação de classe, surgindo como objeto apenas pela vontade de sua palavra ou imaginários narcisistas. Práticas de investigação acadêmica que na infâmia de sua covardia moral, não se conseguem perceber na função formadora de quadros gestoriais para a organização da exploração nas relações sociais capitalistas, sendo capaz unicamente de sustentar seus bovarismos intelectuais dentro de pequenas salas departamentais nas internas divisões fordistas da instituição. O teoreticismo acadêmico que trata o modelo marxiano como vã ideologia, que na sua arrogância pueril chuta Marx como um cão morto para assim, na bovina alegria dos puros e inocentes direcionarem seus ofertórios explicativos à miséria conceitual dos multiculturalismos e dos pós-colonialismos, a expressão máxima da covardia de intelectuais panglossianos satisfeitos consigo mesmos nas suas rotinas empresariais capitalistas no interior da universidade.
            O mérito do livro de Nildo Viana está justamente em retomar a radicalidade da perspectiva marxiana, por entender o método dialético como expressão política do proletariado, isto é, daqueles que se multiplicam aos bilhões como força de trabalho globalmente explorada pelo capitalismo. Enfim, o livro tem o extraordinário mérito de entender e apresentar a unidade da obra marxiana como expressão abstrata da verdade concreta das lutas de classe na história, como expressão teórico-conceitual transitória da própria transitoriedade da realidade histórica, por entender que o método na sua processualidade justificatória é apenas um elemento heurístico para atingir-se o concreto determinado dos fatos, as relações sociais nas suas determinações conflitivas da realidade histórica do capitalismo contemporâneo.
            Com os trabalhos de Nildo Viana desenham-se as possibilidades concretas de na tradição do marxismo brasileiro afirmar-se como definitivo o diálogo com a obra marxiana e apontarem-se assim as possibilidades de outras práticas intelectuais para o combate que pouco a pouco se vai instaurando na universidade brasileira contra os racionalismos positivistas tecnocráticos e/ou os irracionalismos culturalistas. 

Prefácio do livro: 
Viana, Nildo. "Escritos metodológicos de Marx", Goiânia: Alternativa, 2006.

2 comentários:

  1. O prefácio de João Alberto esclarece como é possível empobrecer aquilo que já é atualmente pobre: o marxismo. O trabalho de Nildo Viana, como mostra J. Alberto, consiste na vã e adolescente tentativa de purificar a obra de Marx, separando um "marxismo original" de outros meramente falsos. Curiosamente, Nildo Viana é o baluarte dessa proposta linguistica sem no entanto citar o nome de um único filósofo da linguagem. Eu o aconselharia a começar com o conceito de "denotação" de Frege. Mas Nildo Viana não o fará. Frege certamente é um burguês, capitalista, explorador das classes populares. Não poderá ensinar nada. Então indagamos: sem uma consistente filosofia da linguagem, através de qual milagre Nildo Viana consegue separar o marxismo verdadeiro dos falsos marxismos, senão a partir do seu mais evidente dogmatismo carola? Qual teoria da textualidade Nildo Viana assume para avaliar estas supostas "deturpações" do pensamento marxista? O "achismo dogmático"?

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  2. E complemento o comentário acima: não há definição de "marxismo" mais fraciscanamente pobre do que a de Nildo Viana: "marxismo é a perspectiva teórica do proletariado". Há tantos problemas e defeitos nesta definição que não me cabe aqui enumerá-los. Vou mencionar apenas a mais evidente: a essencialização, a substancialização de um conceito. Não há nada mais contraditório do que "definir" e "estabilizar" o marxismo, uma doutrina que se construiu sobre a base da reivindicação de que "tudo é histórico, transitório, destinado a morrer e em seguida renascer". O que seria esta perspectiva eternizada do proletariado, que define de uma vez para sempre o marxismo verdadeiro e o separa de tudo o que é "pseudomarxismo"? Ou o que dá no mesmo, qual é a essência do proletariado, já que ele tem uma perspectiva que definitivamente estabelece o que é e o que não é marxismo? Como? Indício grave de dogmatismo? ... Hummmm ...

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